sexta-feira, 20 de maio de 2011

"Há liberdade lá fora"


Arthur Tadeu Curado é um excelente entendedor da natureza humana. Ele é um cara que me faz pensar; me faz querer entender. Enquanto, em seus outros textos, ele falava tão bem acerca de laços afetivos, paixão e amor, em Bem perto do fim a história tem por base as relações sociais. Precisei ver duas vezes, pro meu intestino cerebral trabalhar melhor e digerir tanta informação. A gente pensa que essa temática pós-apocalíptica já explorou tudo que se podia, e então vem o cara e te mostra um cenário cheio de ideias novas e possíveis - fosse este o caso: uma Brasília devastada, e apenas quatro vidas remanescentes em uma data sei-lá-qual no futuro. Foi bacana ver esse tema aplicado ao teatro, que aproxima a plateia de tudo que vive, sente e sofre o personagem - melhor que no cinema. O Arthur foi feliz em elaborar um futuro detalhado, em que a involução e a falta de entusiamo social tornaram cotidiana a desgraça, restando pouco além de regras do governo para reparo de danos, gerúndios proibidos e latas de fake leite condensado (que já não existiam mais vacas).


Não sobrou nada lá fora; o nada é basicamente tudo o que há - o Chico, a Olga, a Valentina e a Estela, algumas lembranças guardadas, outras perdidas, um pouco de água que dure, talvez, mais dois dias, e então, nada mais. A trilha é um sussurro suave da Fernanda Takai. Então, entre a fome e a sede, eles se lembram do que já nem lembravam mais, repensam a relação mística entre o universo e cada um de nós e ainda questionam o trabalho de Deus e suas "maratonas" de início e fim da humanidade. A devastação é tamanha, que num certo ponto os quatro sobreviventes parecem experimentar um estado de anulação, em que não há bem desespero, nem tampouco há esperança. E se não há noção de tempo, a menor distração é ouro; logo, qualquer "dinâmica de grupo" se instala como ritual de sobrevivência - um escape quase infantil, mas essencial.

É normal surgirem conflitos em um grupo e contexto como esses: cada um pensa, à sua maneira, em como sobreviver. A essa altura, o texto revela uma pérola que, quando ouvi, senti como se ele tivesse me transcrito em uma frase. Olga, a mais rígida do grupo, quando insultada pelo Chico, profere, em sua defesa: Sou escrota, mas não sou ridícula (senti uma relação tão imediata com essa frase, que virou minha definição pessoal adaptada). Não vou citar as outras expressões geniais que o autor solta ao longo do espetáculo, pra não estragar a surpresa.


Neste ponto, seria loucura acreditar que os fatos ali pudessem mudar, ou é exatamente essa esperança o que lhes restava (além das roupas do corpo, algumas lanternas a pilha e um vinil do Mágico de Oz)? Continuo olhando para o céu - disse a Estela, no aguardo daquilo que mais lhe fazia falta. Aliás, uma opinião comum foi quanto à atuação da Patrícia Marjorie se sobressair, principalmente na proximidade do final da história. Foi evidente o nível de emoção que pairava na última cena, quando a Estela, cedendo à desistência, foi incapaz de ouvir o sinal da transformação, o indício de que algo estava diferente. Possivelmente, após os goles finais da última dose de água semipotável disponível, haviam restado algumas gotas de esperança. E então, nunca se sabe - mas, não sabendo é que se imagina mais.


Uma vez me expressei sobre Dois de paus, sobre Complexo de Cinderela, então Canção para dançar sem par, e agora, Bem perto do fim. Porque o Arthur me faz querer falar.

Pra quem puder ver, tem mais duas sessões neste fim de semana, às 20h30 no Mercado Cobogó (704/705 Norte, Bl. E loja 51).
Mais informações no bempertodofim.com.br



E em junho: Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite.

6 comentários:

  1. Eu tb adoro os textos do Arthur. É engraçado como apesar de uma aparente verborragia ele faz a gente entender de forma muito clara o ponto de vista dele. O meu espetáculo predileto dele ainda é o Dois de paus, a primeira versão, mas acho realmente que o Bem perto do fim é um amadurecimento artístico do cara. Vale bastante a pena uma ida ao teatro, crazy people!

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  2. Texto Do Caralho!!!
    Eu amei o espetáculo. Acho forte e leve ao mesmo tempo.

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  3. Não existe palavra para definir esse espetáculo e todos os outros de Arthur Tadeu Curado. FANTÁSTICO!
    Parabéns a todos que fizeram parte desse grande sucesso.

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  4. Achei o espetáculo muito sufocante e se não tivesse tido aquele "final feliz" eu teria saído do teatro e dado um tiro na minha cabeça.

    (sim, isso é um elogio).

    Acompanho o trabalho dessa turminha já tem um tempinho e adoro boa parte do que eles produzem.

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